domingo, maio 30

I

Por quantos caminhos a cabeça tenta
ler o corpo estranho que ao meu corpo
se apresenta
com qualquer linguagem mais veloz. E a língua
por quantas palavras e definições
transita gesticulando
a boca que desejaria envolver
E mãos que mesmo não possuindo
palavra por palavra
terminam por querer. Se estás
olhar arisco, clave, cadeira
entre as linhas paralelas do infinito
no fundo dos poros; atrás danço
Entre a dimensão de algo
que sem sombra de dúvidas existe: imagem
e algo além, densa leveza que chama
Balança o impulso que teima
com o meio, diante de mim
tenho o que pressinto, adivinho e vejo
Diante de mim
sua pupila, buraco negro.

II

Vou riscar no chão os passos de dança para você acompanhar. Não é preciso nem recomendável que você os siga à risca, melhor seria se pisando entre eles propusesse uma nova cadência, coreografia insuspeitada que tirasse força do movimento próprio. E talvez assim desavisado descubra um caminho neste labirinto. Eu abro os olhos para as entrelinhas e pinto mais algumas pelo exercício da prática. Resta a você, por sorte ou descuido, esbarrar com elas e alongar a fissura entre imaginação e realidade. Palavra engessada, realidade. Talvez então algo se rompa, sincretismo dimensional. Não nego, tem se pintado de um tom vibrante e discreto, como uma suave presença recém conquistada. Se é preciso realizar o percurso para despertar e pegar em armas. Que venha antes o desejo. E a boca que cala no beijo, esta não mente.


quinta-feira, maio 27

enquanto planejo o impossível,

mil possibilidades

passam em branco;

linhas não lidas, vidas não vividas

que a quadratura varreu para o tapete.


na verdade, (digo muito

na verdade

e veja só)

mil mentiras foram ditas

para chegar até aqui.


na verdade, eu sou

quase viva quase

agora quase fui

quase eu.


na verdade, não existe.

franqueza, matéria.

o que existe são intenções;


e sempre haverá os mal-entendidos.


quarta-feira, maio 26

Um jantar inusitado - em Tokyo

Pé, orelha, língua. Feijoada completa servida entre pedaços de corpos desnudos, inertes. Presunto de sobra. Cru e fatiado à moda da casa.

segunda-feira, maio 24

Carnaval

De flor azul na cabeça
Purpurina nos olhos,
(estrelas ao invés de lágrimas)
por quatro dias pulamos
cantamos
e a existência suspensa ganhou forma
fantasiada de alegria pura
de "vida"
E a gente passava pelas ruas
sublimando o cheiro de mijo
de suor
A proximidade de um braço estranho
Fingindo que o sol quente não incomoda
Que o sangue frio não morde
Que a pele inteira não arde
Gritando a sede de mais uma dose.

terça-feira, maio 18

Frank

Engoliu uma tesoura aos cinco anos de idade. Problemas digestivos à parte, causou-lhe transtornos maiores. Picotava a realidade num eterno boot, cada instante era um zero em potencial. Passada a novidade do eterno recomeço, veio o incômodo da alma saco sem fundo. Preferia este último termo do que buraco negro, imagem que lhe causava arrepios. Facilidades sociais reconhecidas, pela impossibilidade de se guardar rancor, perguntava-se muito sobre a saudade. Como as pessoas sentiam pesar a falta de algo que antes haviam conhecido. Como revisitar memórias. Passatempo preferido: recorte e colagem. Era assim, um álbum de coisas coladas aleatoriamente. Achava graça quando alguém via beleza na composição a ponto de encontrar nela uma ordem. E por alguns momentos se deixava ser parte de outra pessoa que nomeava suas partes como se fossem parte de algo maior. Achava bonito, algo maior. Por dentro, pesava a tesoura que o picotava. Cedo já havia ultrapassado a solidão, nem mesmo se sentia um só. Custava-lhe muito trabalho parecer inteiro. Existir o consumia tanto que mal tinha tempo para o resto. Esperava o dia em que tudo repousaria e manter a colagem não mais seria seu fardo. Não é difícil de imaginar, queria que o corpo fosse cremado. E as cinzas diluídas na água do mar, unidas pelo oceano.
Algo maior.

segunda-feira, maio 17

O caco de vidro ainda na boca

Que antes que eu começasse a falar
o que vim aqui,
caisse uma bigorna, um raio, um avião
Antes do centro, enquanto ainda falávamos de
banalidades e importâncias que não esta
Antes destas palavras tortas,
agora delicadamente
desvirtuando o que sinto
e te comunicando este sentimento alheio
que sem escolha assumo diante de você
De onde esperava luz, a neblina
da sua estranheza
O sentimento que não passa da barreira da sua pele
volta pra mim cansado, me pede satisfação
Não tenho, eu digo,
em silêncio enquanto recolho a chave do carro
Não posso te satisfazer, nem explicar
Como ter feito crescer um filho
que volta pra casa dizendo "assuma,
quem me trouxe vida, me mata"
Não posso, eu digo,
em silêncio enquanto solto o freio de mão
esperando uma ladeira, um abismo
Mas viro a esquina, nenhum caminhão,
nenhum acidente
Só estes estilhaços espalhados no tapete

quinta-feira, maio 13

A nova geografia

Meu país é um lugar imaginário
o conheço de cor, de noites insones
de devaneios diurnos
o reconheço em olhos alheios
que tomo emprestados para pintar bandeiras
azul, verde, castanho, límpidas
como se fossem compatriotas - talvez sejam
Meu país é um gesto
este toque no teu rosto, meu país
meu patriotismo
Meu país é transportável
e os fantasmas dos meus pais,
os deixei atrás
Como estátuas mudas em praças vazias
Meus pais em corpo e carne viva,
os visito de vez em quando
E vou a suas casas saindo a tempo
de me manter distante
evitando possíveis invasões
Meu país é um terreno, uma palavra,
o mundo, lugar nenhum, aqui dentro
Eu, desertora do país dos meus pais,
busco a liberdade de demarcar novos
contornos. Meu país não tem fronteiras
prévias, apenas cercas que delibero situar
ou romper
e assim me liberto, desperto e proclamo
absoluto silêncio
Ser

domingo, maio 9

Iso




Maria defendia que uma máquina fotográfica bem intencionada era protegida pelo véu da invisibilidade. Carlo detestava seu hábito recém adquirido de tirar fotos de desconhecidos. São partes de mim que reconheço, ela dizia serelepe enquanto clicava tão contente que sua alegria não a deixaria ver o desagrado alheio caso alguém não gostasse de ter sido flagrado pela lente de um estranho. Já escurecia quando os dois saíram da loja de roupa de cama com travesseiros novos. Maria sacou a câmera da bolsa, Carlo tentou argumentar que a pouca luz não deixaria que as fotos ficassem boas. Maria disse que não tinha problema, resolvia com o iso. Iso? Ele não chegou a perguntar. Tinha aprendido logo nos primeiros meses ao lado dela que quando queria algo, nenhum argumento contrário era suficiente para impedi-la. A noite está tão amarela, ela dizia enquanto tirava uma foto do bueiro. Não era um prazer que Carlo compartilhava, ele se limitava a seguir ao seu lado e a pensar nas coisas a fazer do dia seguinte.

Foi quando Maria pegou no braço de Carlo pedindo-lhe para parar por um instante que ele pôde pressentir o perigo. Como que hipnotizada, Maria tirava uma série de fotos de um homem recostado na parede. Ele vestia um uniforme que poderia ser de um auxiliar de enfermagem ou de um fugitivo do hospício. Carlo não gostou nada do clima sombrio do homem com aquela noite deserta de domingo, pediu à Maria que fossem depressa porque tinha fome para não assumir que estava com medo. Maria continuou clicando o homem enquanto ele fazia alguns movimentos alongando o corpo ao longo da parede escura. Até que o homem levantou a cabeça e fitou-os diretamente. Sem pudor, sem timidez, o homem os encarou com tamanha certeza que seus olhos de lente pareciam absorver mais do que transparecer, mais ainda do que a câmera na mão de Maria. Maria parou de fotografar. O homem fez menção de levantar-se, Carlo segurou o braço de Maria e exigiu que eles fossem embora. Logo o homem deu meia volta e entrou por uma porta no corredor, transformando o medo de Carlo num certo embaraço.

Maria olhava as fotos metida no visor da câmera, Carlo resolveu dar uma espiada para ver o que ela tanto olhava. A foto ficou azul, ele disse surpreso, tudo era tão amarelo naquela noite. Maria sorriu da surpresa dele e atentou para os flocos brancos que voavam ao redor do homem. Carlo ficou confuso, Maria sorriu. Numa hora, ela disse, alguém deve ter jogado restos de um embrulho de presente pela janela porque caíram flocos de isopor. Carlo olhou para o chão desconfiado e confirmou os restos do material que se misturavam ao esgoto. Parece neve, ele disse, perdido na diferença entre o que ele tinha visto e a foto que Maria havia tirado. Maria guardou a câmera e se pendurou ao braço de Carlo, achando graça da confusão. Vamos, ela disse, também estou ficando com fome. Carlo que achava já ter fotografado todos os ângulos daquela mulher que há quase dez anos dividia o mesmo teto com ele, gostou da novidade recém instaurada. Não entendê-la completamente contanto que ela continuasse lhe mostrando flocos de neve feitos de isopor. Que continuasse pintando noites amareladas com véu azul.

(Conto escrito a partir da foto acima, proposta de exercício feita durante a Oficina de Escrita Criativa ministrada por Ondjaki)

sábado, maio 1

O que não se conta mais

Todas essas pessoas

nesta pista

entre eu e você do outro lado

apenas suspeitam - não, suspeitar

exigiria um pensamento - apenas

imaginam que nos conhecemos

Porque dizem ao nos ver

conversar - sobre? - "ah, vocês se

conhecem". Logo concordamos com

um gesto vacilante e elas não sabem que

desde muito antes delas,

de você começar a usar listras,

cabelo curto

e eu a ser eu mesma

Quando éramos outros

juntos