terça-feira, maio 18

Frank

Engoliu uma tesoura aos cinco anos de idade. Problemas digestivos à parte, causou-lhe transtornos maiores. Picotava a realidade num eterno boot, cada instante era um zero em potencial. Passada a novidade do eterno recomeço, veio o incômodo da alma saco sem fundo. Preferia este último termo do que buraco negro, imagem que lhe causava arrepios. Facilidades sociais reconhecidas, pela impossibilidade de se guardar rancor, perguntava-se muito sobre a saudade. Como as pessoas sentiam pesar a falta de algo que antes haviam conhecido. Como revisitar memórias. Passatempo preferido: recorte e colagem. Era assim, um álbum de coisas coladas aleatoriamente. Achava graça quando alguém via beleza na composição a ponto de encontrar nela uma ordem. E por alguns momentos se deixava ser parte de outra pessoa que nomeava suas partes como se fossem parte de algo maior. Achava bonito, algo maior. Por dentro, pesava a tesoura que o picotava. Cedo já havia ultrapassado a solidão, nem mesmo se sentia um só. Custava-lhe muito trabalho parecer inteiro. Existir o consumia tanto que mal tinha tempo para o resto. Esperava o dia em que tudo repousaria e manter a colagem não mais seria seu fardo. Não é difícil de imaginar, queria que o corpo fosse cremado. E as cinzas diluídas na água do mar, unidas pelo oceano.
Algo maior.

5 comentários:

Juan Moravagine Carneiro disse...

Me faz lembrar um conto do mesmo autor de Clube de Luta...vou lhe mandar!

Aliás belo escrito e agradecido pela visita ao Rembrandt

abraço

Vinícius Linné disse...

Me fez lembrar um conto meu.
:D

Mas velho... Acho que era "Broken" o nome dele.

Gosto dessa idéia de recortes e colagens. E nunca somos inteiros...

Muito bom seu texto. Bem escrito e o tema é ótimo.

Sueli Maia (Mai) disse...

Recortes, retalhos, fragmentos... bricolagem, patchwork e mosaicos.
Desconstruções e reconstruções. Não somos inteiros mas podemos ser íntegros. Juntar fragmentos é exercício, é poder se estruturar através da arte. Mosaicos. Frank - um belo texto, único, diferente.
Eu gosto do equilíbrio em tua linguagem - força e delicadeza convivem harmonicamente.
abraços, Luanne.

Luka disse...

"Cedo já havia ultrapassado a solidão, nem mesmo se sentia um só. Custava-lhe muito trabalho parecer inteiro."

Adorei, me fez ler o texto todo de outra maneira. Top esse.

guru martins disse...

...bela
ficção!!!
qualquer
coisa que
eu fale mais
será bobagem...

bj