terça-feira, novembro 3

Luna

Ela sempre se identificou mais com a lua. Tinha mais de refletor do que tinha de luz própria e gostava assim; seu sol era o mundo inteiro. Via a vida como uma série de encontros intercalados por pausas de espírito. Ela era toda outro e solidão. A lua é só, pensava, a luz refletida é pouca e não lhe permite ver todas as outras formas. Mas as tolera como quem desconfia que tudo permanece no mesmo lugar no escuro, tudo tem seu momento de repouso. E quando era dia, estudava muito sobre os contornos, porque tinha um rabo de fera chicoteando entre as costelas. Toda vez que sentia que uma camada sua fora rompida por outra pessoa, o rabo se agitava e era assustador. Estudava até que ponto a fera lhe deixaria ir. Afeto. O que não é feto, o que está formado. O afeto era então a sensação na sua forma perfeita. Mas Luna era toda inacabada, não sabia como encaixar o sentimento pronto em sua superfície desnivelada. Não teria forma, o jeito era lapidá-lo para que se encaixasse ele mesmo em seu próprio solo irregular de Luna que era. A vida dela sob o sol seria então lapidar sentimentos para vesti-los. Sob a lua, repousar na roupagem aquecida e refletir. E a fera assim parecia só um rabo de lagartixa que se recusava a morrer.


4 comentários:

vanessacamposrocha disse...

adorei o "ela era toda outro". Também tenho pensando nas feras, não quero que elas morram, mas também não quero que elas dominem,
o que fazemos?
abraços

Sérgio Luz disse...

escrevamos, pois...

"seu sol era o mundo inteiro". bacana.

Ekatala Keller disse...

Lindo!

guru martins disse...

...absurdamente
bonito
tão absurdo
que possível...

bj