quinta-feira, setembro 3

De que é feita a memória. Que parte de mim constrói, que parte abstrai. Tenho dois canais perpendiculares na minha cabeça. Um que entra por um ouvido e sai pelo outro. Outro que me cruza a testa, vindo de não sei onde, e vai para qualquer lugar. Esse fluir me constrói e me desfaz. E tem esse centro em mim que segura as coisas do fluxo, a memória. Queria que o centro me perguntasse antes de tomar decisões definitivas.
Eu te vi outro dia. Na vitrine de uma loja de vinis, um especial do Queen. Você me tomou, pareceu invasão. E de repente aquele cheiro, aquele mar que era a gente. Porque o inferno, a gente dizia, o inferno é o ego. Muito antes de tudo. Eu penso agora, nunca tive fronteira ao seu lado. Sua presença me tomava em expansão. A guerra era a gente contra o mundo. E o mundo eram os nossos medos. Antes da gente ser a gente. Porque depois. Quase não me lembro de como era eu. Lembro de nós, lançados no espaço infinito um do outro, contemplando nossas bocas como se fossem as primeiras, as palavras como se fossem recém inventadas, as mãos como se nunca antes tivessem tocado. Noutro dia me falaram que isso é o desejo do prazer primário. Que é totalmente explicável. Impossível aceitar que todos aqueles nossos passos exatos em direção um ao outro, toda aquela sinfonia perfeita de palavras e silêncio, tudo aquilo, fosse ciência. Quer dizer, se for, quero aprender. Porque todas as vezes que tentei repetir, pra ver se sentia todo aquele carnaval demodê de novo, caí num vazio sem sentido. Faltava você. Aí, voltando, eu virei a esquina e te vi. Outro rosto, outro passo. Um jeito de andar mais aprumado. Os cabelos não eram longos. Mas era quase você. Poderia ser você. Eu não sou mais eu. Preferi te deixar passar, te ver tem uma ausência que me mata e essa memória intocada é o mais vivo que guardo em mim agora. A gente permanece, apesar da gente tentar esquecer. Do que é feita a memória.

Nenhum comentário: