terça-feira, junho 29

Ela é o que se chama resto até que


Quando Pedro Matheus nasceu, chorou, como qualquer rebento subitamente retirado da paz uterina e lançado na luz branca e fatal da ala dos recém-nascidos. Os pulmões puros, despreparados, impunemente rasgados por um ar atmosférico já poluído por todos os outros semelhantes que habitaram naquele mundo antes dele.

Ainda assim, nascido a contragosto, Pedro Matheus cresceu como um anjo. Dormia como o bebê que era, comia bem para que todas as suas novas células clamadoras por nutrientes pudessem ficar inteiramente satisfeitas para desenvolver-se em seu pleno potencial. Quando finalmente foi para a escola, foi apelidado mesmo de anjo, anjo Pedro. O fato de que seus dois nomes eram na verdade apostólicos foi considerado apenas um breve equívoco, ou melhor, uma daquelas ironias da vida tão cheia de fatos incompreensíveis. A mãe era orgulhosa que só ela. Agradecia à Nossa Senhora todas as semanas pelo maravilhoso rebento que tinham lhe enviado. Depois de quatro filhos assim, tão mais ou menos, achava mais do que merecida a recompensa.

Ele ia longe. Tão longe que ninguém se atrevia a duvidar quando ele dizia que seria astronauta. A mãe nunca tinha sido tão feliz. Coitada. Mal sabia ela que se o garoto imprimia tanta dedicação a tudo que fazia, se ia ao topo de tudo que tinha que fazer, era apenas para extrair o máximo das coisas, sugá-las, entorná-las até o limite em que tudo já tivesse sido visto. E o momento estava mais perto do que a idade sugeria.

Já com onze anos, percebeu um tom de cinza excessivo na paisagem da janela do seu quarto, sentiu um aperto no peito e previu que o resto da sua vida seria assim, com o peito apertado. Então passou a ler vorazmente para entender a vida de outras pessoas. E ninguém percebia o olhar entediado com que ele agia, a mãe muito menos.

Quando o guri fez 15 anos, desistiu do caminho certo. Resolveu tentar então o caminho errado com o mesmo empenho que havia trabalhado nos últimos anos. Começou a beber, a fumar, a usar qualquer droga que passasse em suas mãos, desobedecia a qualquer tipo de autoridade. Tentou tanto que conseguiu fazer com que acreditassem que ele era viciado de verdade, mas ele sabia que poderia largar quando quisesse. E podia mesmo. Se não era de fato virtuoso, era um gênio em conduzir seu próprio destino.

A mãe, pobre, morreu de desgosto. O cara continua por aí. Hoje em dia ele é um puta poeta, nenhum livro publicado. E segue com o mesmo ar de tédio que começou quando ele chorou ao nascer porque era aquilo que ele tinha que fazer mesmo. Nasceu velho, é verdade. Mas quando o tédio gastar, vai morrer jovem, cantando sob o sol de meio dia em plena segunda-feira no quintal de casa. Alugada, sem filhos, sem esposa, nem cachorro. Mas bem entendido que felicidade é o estado do espírito presente, nada mais.

domingo, junho 27


o que tem a sua boca?

esse petróleo doce.

chiclete, beijo de fruta.

harmonia de composição.

cimenta minha língua nos vincos

dos seus lábios. sede imensa.

sua saliva enzima catalisadora

acelera meu pulso. sedimenta.

faz argila do meu corpo,

cheiro de terra fresca queimada pelo sol.

o vapor que sobe do solo - sua respiração.

misturada à minha; composto.

melodia. os traços do seu rosto,

linhas que não termino de ler.

versos que faço música.

canto em silêncio a canção

que começa lá dentro, piano.

e transborda, estoura a corda,

sai como um feixe.

dois olhos japoneses

brilhando na madrugada.


quinta-feira, junho 24

Revés da existência

Para Lígia

o corpo presente,
objeto frio,
insolente,
enrijece a ausência.
a violência de te calar a boca.
e depois do corpo vazio

(que dói chamar de corpo
porque igual a este
também eu tenho um)

depois do corpo vazio, a saudade.
que lembra da morte depois
de já ter começado a passear nas lembranças.
tropeça na morte, pedregulho.
paradoxo sem ironia.

a gente aqui nesta sala
chorando teu corpo
coberto de flores
e não há consolo comum.
em cada lágrima, um segredo.
dor intransponível.
nunca se sabe quanto
e até quando - sempre?
arde tua vida em cada um.


segunda-feira, junho 21

post-it num espelho improvável


tenho sonhado com o sol,
mas à luz do dia
definho

tenho pensado sobre as coisas do mundo,
mas diante delas
a imaginação derrama névoa nos meus olhos

nada que não venha de mim me toca
nada que não seja etéreo faz sentido

andei dando tempo demais ao tempo
perdi a eternidade do presente

já não quero mais a memória
quero a vida instantânea
a percepção imediata
quero o que for

a beleza do que não foi
inexiste

minh'alma é meu corpo à flor da pele

sexta-feira, junho 18

Hoje eu vi você cruzar a esquina
de sebo nos olhos, cara de pau
altivo e feroz, como um louco
decidido
passou pela faixa me olhando
nos olhos
atravessou a rua
com um meio sorriso
nos lábios
parou de diante mim
me olhou de frente
e me disse
escuta o silêncio
de boca fechada
você disse
escuto
e quis ver a vida
de um canto escuro

encarando
uma certa luz
tinhosa nos seus olhos.

quarta-feira, junho 16

quando foi que os contos de fadas
viraram fantasia?
esta língua real não é a minha
agora tanto vale
um copo d'água no deserto
ou a chama do isqueiro
nesta noite fria (2x)
o que importa é o inverso, o avesso
é ter sede e acender um cigarro
morrer de frio e nadar no mar

domingo, junho 13

Respeito aquilo que se oculta


Tem esta imagem que me choca, arrebentar uma tartaruga, meter os dedos nos buracos, romper o casco, noutro dia, sonhei que cavava uma cova e no fundo jazia uma tartaruga apodrecida, a Marta, tartaruga que vivia aqui em casa, depois de velha foi morar em outro lugar, eu tinha um temor secreto de encontrá-la morta no jardim, dentro daquele casco impenetrável, a armadura, ela morta, não importa o quão duro fosse, o casco impenetrável, ela morta, a morte perene, nunca, jamais como sopa de tartaruga, coisa mais canibalesca.


domingo, junho 6


nas entrelinhas do embaraço

um nó que disfarço

refaço

desfaço

como se faz o laço?

sem amar ar

coisa nenhuma



sábado, junho 5


ATAQUE

lá vem ele de novo
fazer uma fenda no pouco
que brotava do aquário
derramar sua água breve
jovem
num corpo inteiro deserto
que suga a água
até secar
cobrando o quinhão da formiga
por pura idiossincrasia

negócio interno
transições
injustas

terça-feira, junho 1

A nova solidariedade


"O direito do Outro à sua estranheza é a única maneira pela qual meu próprio direito pode expressar-se, estabelecer-se e defender-se. É pelo direito do Outro que meu direito se coloca. ‘Ser responsável pelo Outro’ e ‘ser responsável por si mesmo’ vêm a ser a mesma coisa. Escolher as duas coisas e escolhê-las como uma, uma só atitude indivisível, não como duas instâncias correlatas mas separadas, é o significado de reformular a contingência de sina em destino. Chamem a isso como quiserem: camaradagem, identificação imaginativa, empatia; só não podem dizer dessa opção que ela decorre de uma regra ou comando, seja uma injunção da razão, uma norma empiricamente demonstrada pelo conhecimento que busca a verdade, uma ordem de Deus ou um preceito legal.

Por sinal, não há muito o que dizer absolutamente sobre a causa disso. A nova solidariedade do contingente baseia-se no silêncio. Suas esperanças fundam-se em evitar fazer certas perguntas ou procurar certas respostas; satisfaz-se na sua própria contingência e não quer elevar-se ao status de verdade, necessidade ou certeza, sabendo muito bem (ou melhor, sentindo intuitivamente) que não sobreviveria a tal promoção”.


Zygmunt Bauman, em Modernidade e Ambivalência.