terça-feira, março 30

Ainda digo à vendedora
da loja
que mesmo precisando de ajuda
jamais me dirigiria a ela.
Talvez não me dirija a pessoa alguma.
E que procuro algo
bastante específico, embora
não saiba ainda
exatamente
o que seja.
Sim, é pra mim mesma.
Se não servir, dou de presente.

sexta-feira, março 26

veraneio (desvario)

o meio dia me corta ao meio
me aparta
o sol quente, alto contraste
eu destacada, recortada
ao longe, o mundo

a alegria irrefreável do Rio
a morena de short
o moreno sem camisa
eu branquela de alma embotada
óculos escuros, suando em bicas
dilúvio do meu ser evidenciado
pelo verão eterno desta cidade

mal ergui as barreiras, já transbordo
água, lágrima, sal, mar morto
meu próprio rio
do qual rio
sem graça

devaneios de cachecol
para escorar o pescoço
e meias que amenizem
o desconforto de botar os pés no chão
sem escolha, ando quase nua
ardendo de calor e frio
aguardando que o inverno
me recomponha
nos limites firmes da sua indolência

terça-feira, março 16

Edgar

Naquele dia, sentiu uma vontade súbita de caminhar embora não soubesse exatamente aonde poderia ir. Pouco importava, pensou, e nunca antes tinha se permitido tamanha falta de planejamento.
Era sábado, e como todos os sábados, almoçava na casa do irmão que casou com uma turca e teve três filhos. Chegava por volta do meio dia, tomava uma taça de vinho branco, atualizava-se dos acontecimentos da última semana, depois se sentavam à mesa, comiam algo que Aisha havia preparado, provavelmente cabrito, Edgar então entregava alguns doces para os sobrinhos e por volta das cinco já estava em casa. Mas naquele sábado, seu irmão lhe telefonou pedindo desculpas, cancelava o almoço por causa de um imprevisto. Não explicou, só disse imprevisto.
Quando Edgar desligou o telefone, a palavra ressoou na sua cabeça. Imprevisto. E quis algo. Não identificou de imediato a vontade, era um impulso. De repente, as paredes do seu apartamento lhe pareceram opressoras e sentiu algo pela primeira vez na vida: sua alma não cabia ali. Pegou as chaves, o chapéu, o casaco e saiu de casa. Ao chegar na frente do prédio, hesitou. Ainda não sabia aonde ir. Lembrou de um caminho que fizera uma vez num dia de chuva porque o de sempre estava alagado, nunca mais retornou por ali porque levava mais tempo para chegar ao trabalho. Mas era bonito o caminho, alguns grafites na parede lhe haviam chamado a atenção. Resolveu ir.
Logo no primeiro passo percebeu uma autonomia das pernas, que iam tão firmes e ao mesmo tempo relaxadas. E ele sentiu como se estivesse pegando uma carona consigo mesmo. A cabeça sem o peso do compromisso de ter que comandar lhe dava ar para pensar, não precisava controlar sua direção e isso era incrivelmente confortável. Como nunca havia provado antes? O imprevisível. Parecia que algo lhe conduzia. E os pensamentos foram sendo ordenados de forma tão límpida. Tão bom quanto caminhar era ver as pessoas caminhando, apressadas, decididas. Para onde iam com tanta certeza? Pensou que ele também no dia anterior parecia muito certo sobre onde estava indo, mas verdade seja dita, nunca antes havia se sentido tão seguro em relação ao seu caminho quanto agora, indo para lugar nenhum. E foi invadido por um grande pesar ao se lembrar da segunda-feira, quando teria que pegar o antigo caminho, ir até o trabalho, com hora certa, onde tomaria o café no mesmo lugar, onde encontraria as mesmas pessoas. E decidiu: a partir daquele dia, andaria por caminhos diferentes todos os dias.
A rua, que antes era nada mais que um corredor por onde transitava todas as manhãs, mais um dos tantos corredores do seu cotidiano, pareceu-lhe extremamente poderosa e ampla. Diria ainda mais, diria que a rua era infinita. Diria ainda, mais tarde, quando de tanto caminhar tivesse exercitado bastante a mente, diria que a rua continuava sendo um corredor. Por onde ele passava e decorava com diversos quadros, como bem entendesse, como bem a rua se apresentasse. Flanar, ele diria, flanar é viajar para dentro. É desenhar nas arestas do asfalto cinza as mais coloridas paisagens internas.

domingo, março 7

Guardanapo

Eu estava a ponto de dizer que ter te conhecido refratou meu sentido para um caminho que já me parecia melhor desde o primeiro dia; e que algo me dizia que um tempo de talvez felicidade estivesse a caminho. Quando sua mãe entrou na sala com duas cocas, gelada, e ligou a televisão. Era domingo, o Faustão está tão magro, eu disse. Devia mesmo ser loucura. E ficamos ali naquela posição até o Fantástico começar. O domingo acabando com aquela tristeza de um recomeço que talvez nós não quiséssemos se nos fosse dado o direito de escolha, a segunda, cada um pro seu canto. Um dia, eu ainda conversaria com você até o Altas Horas começar sobre como cada ser humano deveria ter o direito de fazer seu próprio calendário como bem entendesse. Você diria que seria impossível organizar um mundo assim e eu sorriria secretamente satisfeita com seu senso de praticidade. Como naquele dia, na mesa do bar, eu não sabia onde colocar a sacola e você sem interromper a conversa com qualquer outro tirou a sacola da minha mão e a colocou num canto. Eu me encantei, te digo agora, com seu jeito de me enxergar olhando e escutando outra pessoa, sem virar as pupilas na minha direção. Era a mim que você via com um sentido que os outros não podem ver e hoje vejo o quanto é mesmo especial, esse sentido que a gente criou, nosso canal próprio de comunicação por onde transmitimos nossas melhores piadas em forma de metonímia que os outros mortais jamais compreenderiam, o mesmo canal por onde escorremos um pelo outro. Meu amor, hoje eu te digo com muito mais propriedade, tudo que eu achei que fosse brega em algum momento da minha vida hoje com você me toma de um jeito vanguardista. Quero que você não guarde esse bilhete, que o rasgue. Porque não poderia suportar que alguém lesse tamanho segredo. Algo acontece entre a disposição dos nossos corpos materiais, a criação. Profanar nosso mundo, jamais.