quinta-feira, dezembro 31

Depois de ler Sidarta (desabafo)

Por que meus sentimentos não acompanham minha compreensão racional do mundo? De onde vem tamanho desacordo se tudo que penso tem o mesmo sentido? Quantos gritos a mais serão necessários para se chegar até o silêncio? Quantos anos terão que decorrer para que eu sinta no meu sangue que o tempo não existe? Quantos opostos terei que viver para realmente entender que tudo é uma coisa só? Quantos amantes para que eu sinta que o amor é mesmo um verbo intransitivo? Quantos gostos, quantas preferências, quantos repúdios, quantas palavras, quantas opiniões... para que tudo finalmente se funda? Quando acabam as perguntas? Será que terei que gastar uma vida inteira para só depois entender o que ela significa? 2009 se despede deixando uma grande interrogação. E uma leve suspeita de que enquanto houver perguntas, não haverá resposta suficiente.

terça-feira, dezembro 29

Naquele dia

Eu quase entrei na água, lembra? Mas

o mar estava frio, eu não tinha biquíni

Em pouco tempo o sol se poria

e o vento poderia


Quase entrei no mar, mas depois

não secaria o corpo

antes de entrar no carro

Não queria molhar o banco, grudar areia no pé

sentir o sal na boca. E se viesse um tubarão

ou uma água-viva


Quase tirei a roupa

nadei nua

rolei na areia

sujei o carro


Mas no canto do olho: o calçadão

me esperando completamente seca

e impecável


De repente já era noite


terça-feira, dezembro 15

All that jazz

Viver a vida como Bob Fosse fala do show business, o excesso e a falta. A melancolia salpicada em purpurina, a tristeza no auge da euforia. A máscara e o conteúdo, a discrepância, o abismo. A repetição, a reiteração. Viver a vida com todo aquele jazz, aquele samba, a bossa nova. O jeito manso, o jeito audaz, o jeito algoz. Todo excesso será castigado onde se descartam extremos que não sejam encenados. Encenemos. Que caminho revela o conteúdo, que forma expressa o núcleo central. Desvirtue-o, melhor, inverta-o. Que gesto vindo do meu braço esquerdo culminando na minha mão descarga devidamente a vibração do meio das minhas costelas. Descarga estética, o extremo oposto. O coração é a metáfora, a forma. Porque bombeia, espalha o sangue. Porque falha e denuncia. Mas atrás do coração, a energia. Meu coração metafórico é uma metralhadora em estado de graça. Não tem graça nenhuma, eu sou toda blindada. Parênteses breve: cada tiro me sai pela culatra. Meu impulso bate e volta, minha preguiça é cansaço; existe uma guerra dentro de mim. Um carnaval ao avesso. Eu não sou o que vejo no espelho. Não sou essa pele, não sou essa boca, essa sobrancelha grossa, essa pessoa alta. Não sou tão grande assim. Eu sou algo incomunicável dentro disso, disforme, minúsculo. Às vezes, me olho no espelho e não sei o que fazer comigo. Fecha parênteses, me pinto. Não tem ato para a tristeza no espetáculo, não tem nada que se revele na sombra que interesse ao público, apenas o desejo de luz, o palco, o holofote. Que continue o show, que a carga dramática potencialize a encenação para que a mentira seja só o figurino da verdade caricaturada. Aplausos.


quarta-feira, dezembro 9

Rompimento

Hoje, inventei de dormir

no lado da cama que antes

cabia a você - ainda o seu formato

encaixei no seu contorno,

mas não me dupliquei

apenas encobri sua ausência

com meu corpo gelado

larguei a manta, que venha o frio

pra minha forma única desformar

suas linhas na minha cama

pro meu peso novo de uma pessoa só

remodelar seu buraco no colchão

assim garanto que o próximo

que por ventura se aproxime

não se aproveite dos seus vestígios

nem das pistas que sua sombra

em mim possa dar

(cansei das repetições)

se vier alguém que invente um modo;

um caminho inédito no labirinto destes lençóis.

A partir de amanhã, durmo no meio

debaixo da manta e só

me permito ser descoberta

quando amontoar em mim calor próprio

suficiente

amor próprio de pessoa imperfeita

sujeita a ser aberta