segunda-feira, novembro 30

entrecortado


quantas vezes você diz

alô ao telefone mudo?

por quanto tempo suporta o rasgo

do silêncio, a não resposta?


eu respondo o telefone sem dizer

uma palavra, me dou o luxo de esperar

ser dita


eu digo alô cinco vezes, cada vez

mais puta que a outra. tenho certeza

de que alguém está lá (por toda a minha vida

tentaram me contar um trote)


eu digo alô dez vezes, cada vez

mais alto que a outra. tenho certeza

de que me escutam mal. porque grito

e não me ouvem. porque corro

e não me movo. porque vivo

e ninguém vê


eu não atendo o telefone, é extremamente

arriscado

pode ser engano, pior: pode ser que alguém

realmente queira falar comigo


eu não tenho telefone

nada do que esteja fazendo, ainda que

seja nada, deve ser interrompido


coser a vida me custa atenção, um susto

furo meu dedo. me relaciono a duras penas

com aquilo que vejo; trim! visão pavorosa

a voz sem rosto, o texto sem contexto


quinta-feira, novembro 26

Eu e ela

Antes, era só, eu.

Até que sem mais, fomos eu e você.

Depois disso, era sempre eu e ela:

a ausência que você deixou.

Que tomou vida própria,

quis fugir de mim inquieta

por outros braços, outros olhos,

um canal qualquer.

Depois cansou.

Foi habitando em mim mesma,

no meu desassossego.

Calou perguntas

que não tinham resposta.

Virou hábito, tomei gosto.

E hoje ela descansa.

Juntas conversamos conversas absurdas

e tomamos chá em dias de muito calor.

Agora deu pra ser possessiva.

Não abre a porta pra estranhos.

Não deixa ninguém se apresentar.


sábado, novembro 21

Bem-vindo à Terra, Tomas

Como montar uma pessoa? Do que é feita a vida que pulsa na veia de um ser que se diz humano? Era esta a pesquisa última de Tomas na Terra; sua missão. Antes que falhasse seu corpo pelos efeitos do tempo, antes que se esvaísse dele a essência que fazia dele um ser vivo, teria que descobrir qual era o substrato que assim lhe tornava. Antes que ele, por descuido ou por fatalidade, entornasse algo essencial que não mais pudesse recuperar. Precisava tomar posse da essência que lhe fazia ser ele próprio e não outra pessoa qualquer. O que seria um Tomas? Era ele um Tomas? Seria ele mesmo com outro nome, outro sexo? Talvez aí pudesse encontrar a chave do mistério da existência: na sutileza ou na aberração, ainda não ousara definir, do diferenciar-se de outra pessoa. Mas temia diferenciar-se a ponto de evidenciar sua natureza discrepante, o que tentou disfarçar arduamente durante toda sua sobre-vida.
Tomas era mesmo um bom observador, mas não sabia criar movimentos ou representações que parecessem genuinamente humanas. Então copiava sem dó, mas disfarçava devidamente. Com o tempo de vida que lhe havia sido concedido até então sem que tivesse escolha ou mesmo sem que lhe fosse permitido preparo, pôde notar e humildemente chegar à uma conclusão - pois poucas conclusões se permitia antes de alcançar a verdade última que buscava. Reparou que as pessoas não enxergavam muito bem ou não se importavam. Ele que usava óculos mesmo sem lentes podia ver coisas que quase pareciam suas por não serem vistas por mais ninguém. Mas fingia não ver pois era assim que se fazia ao seu redor, e as coisas terminavam passando sem dono pelo mundo afora. O que lhe dava muita pena e lhe inspirava as mais sublimes divagações. Sonhar com o que no seu íntimo se sentia atraído por, ainda que não o admitisse, era seu único capricho. Mas seria evidenciar-se demais apropriar-se de impressões e assumir gostos que lhe pareciam peculiares e provavelmente inapropriados.
Não era mesmo audacioso. Só uma coisa copiava descaradamente: trejeitos. Mas isso era involuntário. Um gesto de outra pessoa que lhe provocasse simpatia - o gesto puro, não a pessoa - passava então a fazer parte do seu vocabulário gestual. Era sem controle e com bastante constrangimento que se pegava muitas vezes reproduzindo o gesto na frente de seu próprio autor e parava no meio certo de que seria pego e repreendido. Mas não. As pessoas que simplesmente viviam de forma tão natural não pareciam capazes de reconhecer nem mesmo suas próprias criações gestuais.
Assim Tomas aprendeu em pouco tempo a costurar sua identidade secreta, enquanto tomava tempo para buscar aquilo que nele se escondia como um órgão não utilizado no seu próprio corpo. Precisava saber que órgão era aquele e colocá-lo para funcionar, este órgão talvez fizesse dele um Tomas, o Tomas, ele.
Não sabia dizer exatamente quando começou a busca. Lembrava-se vagamente de um sonho, um velocípede em direção a um abismo, ele caindo da cama e uma frase que ecoava junto com o despertar no susto: bem-vindo à Terra, Tomas. E tal saudação ao mesmo tempo que irônica, soava intrigante e incitava-lhe a encontrar o interlocutor que lhe estatelou no mundo enquanto lhe dava as boas-vindas. Deveria haver uma celebração em algum lugar do planeta, talvez até dentro dele mesmo.

sábado, novembro 14

pingo

inércia do tempo tal momento
teu olho a vagalumiar o meu
tua boca falando por mim
meu corpo à vontade já
sem consciência de si
eu me diluo em você
deságua-se em mim
viramos gota d'água
escorrendo pela
linha do tempo
que não
passa
passe
amos

s
.

domingo, novembro 8

A dor do parto

Sim, eu conheço a dor do parto. Tenho nascido de mim mesma desde que me descobri uma pessoa viva. Conheço a dor do parto mais do que muitas mulheres que colocaram crianças no mundo e sou mais mãe de mim mesma do que aquela que foi minha progenitora. Não é ingratidão. Não é nada sagrado. Mãe é mãe é só um palíndromo sem maior mistério. Aqui eu perco o foco, não quero que isso soe como uma malcriação. Até porque desconfio que nunca tenha sido exatamente criada; no máximo até hoje eu me inventei. Se perco o foco espero que quem já tenha passado por uma grande dor, a perda, o parto, a pedra no rim, possa me compreender. É fácil perder o discernimento e muitas vezes a dor é tão aguda que provoca reflexos em outras partes do corpo. Se minha própria progenitora sofreu dor ao expelir este meu corpo mal nascido por no máximo algumas horas, meu trabalho de parto segue agora por mais de vinte e três anos. Com bons intervalos, devo dizer. Tem dias em que a calma do útero repousa sobre mim e eu aceito não nascer e contemplar o mundo da minha bolha uterina. Tem dias que eu morro e embora não seja esta a dor maior, eu engulo meu corpo todo. Eu me trituro e me devoro. Mas tem noites, certas noites, onde eu me encolho pra tentar conter uma dor que estica, um calor que ameaça rasgar minha pele - eu estou nascendo. Uma contração dilata minha mandíbula, eu abro a boca num grito que ainda não tem som pois é abafado pela atmosfera amniótica ao meu redor. Eu quero gritar, mas quero tanto que quero que meu sussurro seja um estrondo. Eu tenho uma bolha de ar dentro de mim que me sufoca. Eu estou nascendo sem anestesia porque a dor é necessária para que haja uma força contrária que me expila de mim. Sinto crescer uma ânsia absurda por alcançar a superfície de mim mesma e estourar meus pulmões. A dor de nascer é a que sinto com mais orgulho. Não existe caminho fácil para expelir a farpa importuna da inexistência.

terça-feira, novembro 3

Luna

Ela sempre se identificou mais com a lua. Tinha mais de refletor do que tinha de luz própria e gostava assim; seu sol era o mundo inteiro. Via a vida como uma série de encontros intercalados por pausas de espírito. Ela era toda outro e solidão. A lua é só, pensava, a luz refletida é pouca e não lhe permite ver todas as outras formas. Mas as tolera como quem desconfia que tudo permanece no mesmo lugar no escuro, tudo tem seu momento de repouso. E quando era dia, estudava muito sobre os contornos, porque tinha um rabo de fera chicoteando entre as costelas. Toda vez que sentia que uma camada sua fora rompida por outra pessoa, o rabo se agitava e era assustador. Estudava até que ponto a fera lhe deixaria ir. Afeto. O que não é feto, o que está formado. O afeto era então a sensação na sua forma perfeita. Mas Luna era toda inacabada, não sabia como encaixar o sentimento pronto em sua superfície desnivelada. Não teria forma, o jeito era lapidá-lo para que se encaixasse ele mesmo em seu próprio solo irregular de Luna que era. A vida dela sob o sol seria então lapidar sentimentos para vesti-los. Sob a lua, repousar na roupagem aquecida e refletir. E a fera assim parecia só um rabo de lagartixa que se recusava a morrer.