quinta-feira, outubro 29

Cavalo dado

Se desconfio

que me ameaça um elogio

não olho os dentes

Mostro meu sorriso cordial

reflexo mais desarmador

pro inimigo que se aproxima

(um falso farol, um fundo falso)

Na elegância,

ponho minhas mãos ao alto

Assim assalto qualquer indelicadeza

que minha tristeza possa disparatar

Queria saber da gratidão pura,

mas o cavalo manco trotando em mim

é cego surdo e grita de dor

Por falta de casco próprio

ele me encasquetou


domingo, outubro 25

Em caso de falta de incêndio, acorde o dragão.


Desejar algo tal como é, é um gesto infinitamente belo. Querer ultrapassar a espessa linha entre o eu e o outro para que talvez algo em algum momento se funda é de uma audácia e prepotência admiráveis. A partir daí, dessa faísca de isqueiro prematura que pela falta do gás foi incapaz de iniciar o fogo, a partir deste momento onde um ser olha outro ser e pensa que talvez a solitária geografia do corpo possa ser transposta, algo acontece. E o som da roda metálica que fez a faísca se propaga no ar desencadeando algum percurso de eventos imperceptíveis para os olhos assustados de quem não sabe o que fazer com uma vontade insatisfeita. Há de se ter fé em qualquer coisa e resistir à tentação de girar a roda de fricção da faísca mais e mais vezes, como se o efeito sonoro não tivesse reverberado da vez primeira. É que as coisas têm uma medida de esforço precisa para que aconteçam na sua plena potencialidade e ela é o gesto involuntário bruto de se desejar algo tal como é. Moção à primeira vista. Se nada aconteceu, a roda girou errante, o que pela ironia da vida ou pela importância do tropeço, também acontece. Há de se evitar o erro da reiteração pois ela é um solvente. A teimosia tem um passo torto que pega o máximo de impulso e anda pra trás. Tem uma linha que é muito sutil entre desejar algo porque sim e desejar algo por quê não? Intuição. Invenção. O dilema de quem deseja alguém que parece ter tanto a ver que não faz o menor sentido que roda, faísca e gás ainda não tenham se unido na chama irrevogável da paixão. A ilusão é uma das maiores pedras no caminho de quem bravamente escolhe sair da intransponibilidade de si mesmo através das janelas empoeiradas dos sentidos. Este vidro só quebra com um soco de mão nua que já perdeu o medo de se machucar. Mas é grande fonte de inspiração, a ilusão. Fatalmente faíscas de chamas que não chegaram a acontecer se transformam em labaredas dracónicas na alta mente inflamável.


sexta-feira, outubro 23

Conto de nada


Era uma vez

o único príncipe que tinha razão: Maquiavel

mas só vale a frase

pro consolo dos sofredores

no decorrer dos meios intermináveis


"Era uma vez"

inaugurou a nostalgia

e acabou comigo


Era uma vez uma infância

onde o déspota foi o juízo


Não era uma vez!

Foram tantas

e eu sou mais de uma

para todo o sempre

com o mesmo ponto impreciso

Não sei se te intuo ou te invento

Joguei teu nome no vento

que se ele fizer a curva

aí eu não me responsabilizo


terça-feira, outubro 20

Superolho

Tem um monstro no meu armário
grudado na porta dos vestidos
Nem Joana D'Arc se atreveu a vir
quando eu disse três vezes
que a tinha matado
(dos medos o menor)
O monstro é um olho gigante
não pisca
Um olho de peixe que disforma
meu eu bicho do mato
Ele foge - meu eu
me deixa cara a cara
com um reflexo vazio
rodeado por cinco olhos
Um gigante, dois cegos
e dois sem dono
O olho do peixe vigilante
cega minha luz íntima
com um holofote pálido
Eu não gosto de espelhos
porque são impessoais
e rudes
Suspendem minha respiração
que nem um peixe fora d'água

sábado, outubro 17

Boa viagem

vivo num fluxo
incontrolável
sem rota
sem destino
sem pausas
desejos se esvaindo
em caminhos bifurcados
sentidos se extraviando
por estradas emburacadas
eu vou

só paro
quando souber onde estou



[Co-autoria Felipe Guiara]

segunda-feira, outubro 12

Parar de fumar nunca esteve nos meus planos

Nos dias nublados,

algo - um farol? um moinho?

me sopra uma imagem

que se esconde além da neblina

Um final de tarde

em qualquer lugar do mundo,

fumando free ou marlboro light

Tomando vinho - bebendo à vida

onde esta tormenta será só

um dos tantos sopros necessários

pra se ter chegado até ali

Como lembrar uma dor antiga

sabida enorme descabida

Da qual aprendizado não desmereço,

mas cujo nome eu esqueci

Hoje sou só um sobrado

das tantas demolições de mim

Mas serei ainda arranha-céu

ciente do cimento

sem mais sentir o peso de ter se erguido

Só a brisa fresca das alturas

e o cheiro de novos ventos.


domingo, outubro 11

quarta-feira, outubro 7

Lacoste

Eu guardo a intenção

no fundo do bolso da camisa

atrás do caderno de notas

enquanto as mãos gesticulam

e chamam atenção pro movimento

Quando a intenção gira para um lado

as mãos vão para o outro

Apagando o lapso precipitado

dos meus olhos permissivos

E se falha o movimento dos gestos

por um pensamento truncado

consulto o bloco de notas

nunca o que se esconde atrás

Assim evito a fuga da fera selvagem

incultada dentro de mim


quinta-feira, outubro 1

Amor é música chiclete em autoplay e repeat mode


amo

amo-me

me cedo

amo-te

amorteço

a morte

morro cedo

morro

(pausa)

amo

amo-me


(da capo)